A arte de viajar ou a viagem como criação artística
Eles chegaram ao fim da linha. Nova etapa desse processo de crescente desenraizamento: primeiro se perderam ao longe, em abismos ou desertos sem fim, agora querem parar num lugar qualquer. Sair deste fluxo irresistível que tudo arrasta.
Nelson Brissac Peixoto
Viajar é preciso, ou impreciso, como a própria vida. Há quem saia de casa com um roteiro pronto, cada gesto pensado, cada minuto do tempo programado, sem deixar espaço para o imprevisto, ou para o verdadeiramente novo. Muitos viajam e nunca saem, verdadeiramente, de casa ou de si mesmos. E há os que viajam, como Fernando Pinheiro, apenas pelo trajeto, pelo inusitado, pelos descaminhos que podem atravessar um caminho traçado. O destino final é a própria viagem que divide com a mulher e o filho que, do banco de trás, vai escolhendo paragens – dormir, comer, visitar. Nada (pre)visto, tudo por se ver. Ao longo do caminho, criaram uma cartografia própria, composta de fragmentos – memórias de outras viagens, de outros tempos, de outros destinos. Ao longo do trajeto, captam tudo o que os olhos veem e também detalhes que ficaram por ver, e que só serão revisitados no final do percurso, numa outra viagem que se constrói a partir da primeira e que é, de facto, uma rememoração, uma maneira de deixar que o espaço vivido se entranhe de forma mais definitiva nas lembranças dos 3 viajantes que percorreram, de jipe, uma das poucas estradas que resistiu ao avanço inexorável das highways. Uma estrada que convida assim a ser vista, desfrutada, percorrida com tempo e vagar. Há em todos nós, em maior ou menor grau, uma relação telúrica com o lugar que nos dizem ser o nosso, pátria, terra, casa. Mas somos conduzidos pelo desejo a errar por outras terras, o que nos faz sentir solitários, ou como os personagens de Wim Wenders, eternos errantes. Para o artista, a viagem é um gesto de criação de uma obra estranha, indefinida, que ainda não se decidiu conformar-se em objeto, é, todavia, sujeito de uma história real e inventada, criada pelo artista que arrastou consigo parte da sua vida neste percurso.
Que é também um percurso feito pela metade. O destino final, se é que de destino e de finalidade pode-se falar neste caso, está do outro lado do mundo, o oriente que atraiu os navegantes que se aventuraram nos mares desconhecidos porque a terra que conheciam não bastava. Era preciso mais, era preciso manter-se em movimento constante para que os outros, depois deles, vissem mais e melhor. Conhecessem mais e melhor. Porque é de conhecimento que se trata a criação artística: movido pela curiosidade, o artista avança em direção ao desconhecido. E o seu gesto criador é isso mesmo, um gesto, um movimento em direção à. E neste gesto, povoado de imagens que captou, o artista reconstitui seu percurso ao criar uma obra que permite aos outros, os que não estiveram com ele e a sua família nesta viagem, a viajarem também, a partilharem memórias e criarem novas viagens para fora de si mesmos.
Curadoria: Mirian Tavares
Realização do filme vídeo: Masako Hoson